Traduzir obras literárias não é um trabalho tão “simples” assim. Um motivo pelo qual as ferramentas de IA ainda não estão a par com tradutores humanos nesses casos é que esses tipos de textos costumam exigir conhecimento sobre o contexto específico, a cultura e, principalmente, os sentimentos expressados pelos personagens, por exemplo. Além disso, há também a questão dos nomes, que, às vezes, precisam ser traduzidos ou adaptados de acordo com a cultura do país para o qual a obra está sendo traduzida, o que as ferramentas de IA não são capazes de fazer com aptidão e qualidade.
Assim, separamos as obras mais traduzidas do mundo para que você entenda um pouco mais sobre o trabalho árduo exigido para fazer esse tipo de serviço. Confira!
Alice no País das Maravilhas
Uma das obras mais clássicas não só da literatura inglesa, mas também mundial, os livros de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, já foram traduzidos para mais de 170 idiomas diferentes, além de terem sido adaptados para filmes, se tornando ainda mais famosos com a direção de Tim Burton. Nas versões em português do Brasil, os livros (tanto o primeiro da série, Alice no País das Maravilhas, quanto sua continuação, Alice Através do Espelho) já foram traduzidos por diversas pessoas, entre elas, Monteiro Lobato, autor da famosa série Sítio do Picapau Amarelo. Algumas das traduções são voltadas mais para o público infantil, com adaptações mais simples e que também remetem à nossa própria cultura, já outras traduções são voltadas mais para o público adulto, com uma linguagem mais sofisticada, sem adaptar muito as referências à era vitoriana da Inglaterra que estão presentes na obra original.
Vale destacar que uma das maiores dificuldades enfrentadas pelos tradutores desses livros é a adaptação dos nomes e, principalmente, dos poemas escritos por Carroll, pois continham muitas palavras inventadas pelo autor. Um dos grandes exemplos de uma ótima adaptação é do poema sobre a criatura Jabberwocky (“Jaguadarte”, em português), traduzido por Augusto de Campos.
Abaixo, podemos ver e comparar como as palavras totalmente inventadas foram adaptadas pelo tradutor de uma forma muito criativa e à altura do original:
‘Twas brillig, and the slithy toves Did gyre and gimble in the wabe: All mimsy were the borogoves; And the mome raths outgrabe. | Era briluz. As lesmolisas touvas roldavam e relviam nos gramilvos. Estavam mimsicais as pintalouvas, E os momirratos davam grilvos. |
Contos de Andersen
Muitas pessoas acham que histórias como “A Pequena Sereia”, “O Patinho Feio” ou “A Princesa e a Ervilha”, já tão conhecidas por todos, independentemente da idade, foram inventadas pela Disney. No entanto, alguns dos contos de fadas mais clássicos, passados de geração a geração, foram, na verdade, escritos pelo autor dinamarquês Hans Christian Andersen, considerado o precursor da literatura infantil. E, como grandes clássicos, suas obras foram traduzidas ao redor do mundo para mais de 160 idiomas. No Brasil, as adaptações que costumamos encontrar são as de Silva Duarte, tradutor especialista em literatura dinamarquesa, mas também há algumas traduções feitas, assim como no caso de Alice no País das Maravilhas, por Monteiro Lobato.
Alguns dos contos mais famosos de Andersen traduzidos para o português (e alguns adaptados para versões diferentes da mesma história) incluem A Pequena Sereia, A Princesa e a Ervilha, o Soldadinho de Chumbo, O Patinho Feio, A Roupa Nova do Rei e A Rainha da Neve (outra história que também inspirou a Disney a criar um de seus filmes mais famosos, Frozen). Uma curiosidade interessante é que, em homenagem à personagem criada pelo autor, há uma estátua da Pequena Sereia na cidade de Copenhagen, na Dinamarca.
O Pequeno Príncipe
Um clássico para todas as idades, a obra de Antoine de Saint-Exupéry já se tornou um dos livros mais citados do mundo, com frases de efeito simples, mas profundas e significativas que já impactaram milhões de leitores. Por isso, o livro, originalmente na língua francesa, já foi traduzido para mais de 400 idiomas, até mesmo para línguas específicas e pouco faladas, como no caso de sua tradução mais recente para o árabe Hassani, um dialeto do norte da África, e para o nheengatu, língua derivada do tupi que até hoje é falada na Amazônia. Não é à toa que “O Pequeno Príncipe” ganhou o título de segundo livro mais traduzido no mundo inteiro, ficando atrás apenas da Bíblia.
No Brasil, a tradução mais conhecida e consagrada é a de dom Marcos Barbosa, padre que integrou a Academia Brasileira de Letras. Mais recentemente, foi lançada uma tradução feita pelo famoso poeta brasileiro Mário Quintana, que levou 70 anos para vir ao público.
As Aventuras de Pinóquio
Uma história que muitos acreditam pertencer à Disney, “As Aventuras de Pinóquio” se trata, na verdade, de um dos maiores clássicos da literatura infantil, escrito em 1883 e, desde então, traduzido para mais de 260 idiomas e adaptado para diversos outros formatos, desde filmes, desenhos animados, peças de teatro até jogos. O filme animado da Disney, lançado em 1940, não foi nem a primeira adaptação cinematográfica do livro, mas é, até hoje, considerada a melhor e mais famosa.
Inclusive, uma curiosidade interessante sobre o autor do livro, o italiano Carlo Collodi, é que, antes de se dedicar à literatura infantil, ele era jornalista e também um tradutor, tendo traduzido algumas histórias de Charles Perrault, considerado o “pai” da literatura infantil e autor dos contos mais clássicos do mundo, como Cinderela, A Bela Adormecida e Chapeuzinho Vermelho.
Harry Potter
Em comparação aos outros exemplos da lista, a saga Harry Potter conta com o menor número de traduções, tendo sido traduzido “apenas” para 85 idiomas, mas isso se deve ao fato de que esta também é uma obra muito mais recente do que as anteriores que citamos. Apesar de haver outros livros muito famosos que foram traduzidos para uma quantidade impressionante de línguas (como Dom Quixote, outro clássico, traduzido para mais de 145 idiomas, ou As Aventuras de Tintim, traduzido para 115 idiomas), Harry Potter ganha destaque por causa da complexidade de sua tradução, que exigiu a adaptação de centenas de palavras inventadas e nomes próprios com significados específicos, que, se mantidos em inglês, poderiam não ter passado o sentido para os leitores da língua na qual estava sendo traduzida. E, se compararmos com outro grande clássico desse mesmo gênero, como “O Senhor dos Anéis”, que foi traduzido somente para 36 idiomas, também devido à dificuldade da obra original, a saga Harry Potter já alcançou mais notoriedade do que outros clássicos.
Alguns exemplos dessas dificuldades na tradução da série para o nosso idioma incluíram a adaptação de certos nomes de alguns dos personagens, como o poltergeist Pirraça (em inglês, “Peeves”, de peeve, que significa “atormentar”), o gato Bichento (em inglês, “Crookshanks”, uma mistura das palavras crook e shanks) e o elfo Monstro (em inglês, “Kreacher”, derivado da palavra creature). Por isso, a tradutora brasileira, Lya Wyler, optou por adaptar os nomes de outros personagens também, de modo a fazer essa “ponte cultural” entre as línguas, traduzindo, por exemplo, Ron para Rony, Dudley para Duda, James para Thiago, Bill para Gui e os nomes em latim, como Albus, Severus, Argus etc., terminando com “o” (Albo, Severo, Argo). Muitos fãs não gostaram dessas adaptações, mas, em outros idiomas, como no italiano, os tradutores decidiram traduzir até mesmo alguns sobrenomes, como no caso de Neville Longbottom, que foi traduzido para “Neville Paciock” (derivação de pacioccone, palavra usada para descrever uma pessoa de boa índole, mas um pouco desajeitada), Albus Dumbledore, que foi traduzido para “Albus Silente” (de “calmo”, “silencioso”), e Severus Snape, traduzido como “Severus Piton” (derivado de pitone, que significa “píton”, “serpente”). No entanto, nas edições italianas mais recentes, as editoras optaram por voltar a usar os nomes originais, em inglês.
Escrito por Juliana Gomes