Tenho certeza de que, se você tem um pouco de conhecimento em inglês, já se pegou assistindo um filme legendado e ouvindo palavras que não eram exatamente o que estavam na tradução da legenda.
Quem trabalha com legendas sabe que existem inúmeras regras e padrões que não permitem fazer uma tradução literal de tudo que está sendo dito, pois é preciso utilizar o espaço e o tempo delimitados para a legenda. De acordo com diversos estudos, a média de tempo para uma leitura confortável que permita acompanhar o vídeo foi determinada em aproximadamente 20 caracteres por segundo e cerca de 6 a 8 segundos em tela.
Justamente por isso, os legendadores recorrem às adaptações das falas, tendo em vista a diminuição dos caracteres e a compreensão do público final. Dessa forma, há uma certa liberdade para captar o sentido da frase e reescrevê-la, principalmente quando se trata de expressões que fazem sentido em uma língua, mas não fazem sentido ou não é tão comum em outra.
No entanto, o tradutor não pode mudar as falas e distorcer o que está sendo dito. Esses erros vão desde casos mais leves que, apesar de confundirem o espectador, não chegam a comprometer tanto, até a casos mais complexos que impendem a total compreensão da mensagem expressa.
No filme “Do que as mulheres gostam”, o protagonista, interpretado pelo ator americano Mel Gibson, assiste a um jogo de basquete na TV e, quando um dos jogadores vai fazer um arremesso, o personagem diz: “Miss!Miss!Miss!”. A legenda correspondente em português exibida foi: “Moça! Moça! Moça!”, mas o correto seria: “Erra, erra, erra!”, pois o personagem estava torcendo para o jogador errar o arremesso. Outro exemplo é no filme “A cor do dinheiro”, no qual o personagem principal é demitido pelo chefe com a frase tradicional: “You are fired”, que foi traduzida para: “Você está pegando fogo”, perdendo totalmente o sentido e comprometendo o entendimento do telespectador.
Recentemente, houve uma grande polêmica em relação às legendas da série Round 6, da Netflix. Diversas pessoas que sabiam coreano reclamaram que a legenda em inglês estava com inúmeros erros de tradução que, inclusive, distorciam o sentido da fala das personagens e a mensagem da série sobre a questão da desigualdade social.
Um exemplo, de acordo com Youngmi Mayer, que é fluente em coreano, é a cena em que Han Mi-nyeo (Kim Joo-Ryoung) diz em coreano “sou muito inteligente, apenas nunca tive a chance de estudar”, mas a tradução ficou como “não sou uma gênia, mas posso achar uma solução”. O problema dessa tradução é que a fala original inclui uma grave crítica social apontada pela personagem, que expõe uma situação complicada em seu país sobre a falta de oportunidade das classes sociais mais baixas. Já a tradução faz parecer que a personagem simplesmente considera que tem baixa capacidade intelectual, perdendo totalmente a crítica feita pelos produtores.
Além disso, tudo pode se agravar ainda mais, pois, normalmente, em casos de a produção ser feita em um idioma pouco comum, como o coreano neste exemplo, todos os demais tradutores se baseiam na tradução em inglês para fazer as legendas para os demais idiomas, comprometendo ainda mais o sentido original, pois a tradução não é feita diretamente do idioma original, mas sim, de um segundo idioma
Outro exemplo de Round 6 é no episódio em que Il-nam (Oh Young-soo) se refere a Gi-hun (Lee Jung-jae) como seu “gganbu”. Em coreano, “gganbu” significa uma amizade de grande confiança. Na versão original, Il-nam afirma que entre ele e Gi-hon não há qualquer propriedade, ou seja, o que é de um também é do outro. Porém, na legenda da série, isso é explicado como se os dois compartilhassem tudo. A diferença, apesar de sutil, não traz muita clareza à verdadeira definição da palavra em questão, o que pode atrapalhar na compreensão do desfecho do episódio.
Para que isso não aconteça, é imprescindível entender a responsabilidade de fazer uma legenda bem-feita, captando a mensagem que o filme/série quer passar. O trabalho do tradutor não é apenas traduzir o idioma, mas também fazer pesquisas, observar atentamente o que se passa na cena, analisar o contexto e a cultura em que o filme/série está inserido e, dessa forma, passar a mensagem de maneira fluente e sem distorcer o sentido.
Artigo escrito por Ana Lígia Wuo (Tradutora e Revisora na Spell Traduções)